Dr. Lucas Leal Souza (Foto: PGE/TO)
RESUMO: O presente trabalho visa possibilitar o estudo
acerca da ingerência estatal indevida na seara privada do indivíduo, no que diz
respeito ao direito de não ter filhos, o qual se encontra restringido frente
aos requisitos para o acesso a cirurgias esterilizantes arrolados pela Lei Federal
n.° 9.263/1996, que regula o §7° do artigo 226 da Constituição Federal de 1988,
dispositivo que trata o planejamento familiar como livre decisão do casal, sem a
possibilidade de intromissão por parte do Estado ou dos particulares. Neste estudo,
levou-se em consideração que a referida lei viola o princípio da dignidade da
pessoa humana, na medida em que fere o direito à autodeterminação pessoal, um dos
vieses daquele princípio maior, bem como se buscou demonstrar que não há
conflito aparente entre a dignidade humana e o exercício da livre di sposição
do próprio corpo, j á que este é uma expressão daquela. Visando defender tal pensamento,
trabalhou-se com a necessidade de proteção do direito ao livre planejamento
familiar por meio de uma imprescindível revisão da Lei n.° 9.263/96 e, como
primeiro passo, teceram-se linhas gerais sobre a esterilização voluntária e o
planejamento familiar. Seguindo, cuidou-se do pano de fundo necessário ao desenvolvimento
deste trabalho, quando se explanaram os dispositivos da referida Lei, bem como
aspectos gerais dos direitos da personalidade e dos direitos fundamentais. Ao
final, demonstrou-se o equívoco jurídico que se instaurou com a vigência da Lei
n.° 9.263/96, o que exige que determinados dispositivos de seu texto se adequem
aos ditames civis constitucionais.
INTRODUÇÃO
Vive-se em uma época na qual o fundamento da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, compilado em seu Art. 1°, III qual seja:
a dignidade da pessoa humana - , tornou-se algo “banalizado”, quiçá drenado de seu
real sentido e conteúdo, para, corriqueiramente, legitimar, por exemplo, ações interventivas
do Estado na seara privada do indivíduo.
Tem-se, muitas vezes, a autonomia privada sendo
limitada pelo poder estatal, sob uma justificativa
travestida de “asseguração da dignidade da pessoa humana frente a direitos fundamentais
indisponíveis”.
É a partir desse confronto aparente entre dignidade
da pessoa humana e autonomia privada que se verifica a existência no
ordenamento jurídico brasileiro da Lei n.° 9.263/96, a qual, ao regular o §7°
do Art. 226 da Constituição Federal (CF), que trata do planejamento familiar, finda
por limitar o direito que assiste às pessoas de não ter filhos, sendo as
mulheres as mais afetadas, a partir do momento em que a Lei traz uma série de requisitos
para a realização da laqueadura tubária, além de impedir a utilização da histerectomia
como meio contraceptivo.
Assim, é relevante o estudo do indigitado dispositivo
legal, destacando a sua afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao
direito à autodeterminação, bem como para desconstruir a ideia de que toda
interferência estatal na seara privada do indivíduo é legítima e que, muitas
vezes, a mitigação da autonomia privada acarreta dano direto no que diz respeito
à dignidade da pessoa humana.
Tendo em vista tal parâmetro, estabeleceu-se como
objetivo geral analisar se a limitação da autonomia privada nos casos de
pacientes que desejam realizar cirurgia esterilizante como meio contraceptivo frente
aos critérios constantes na Lei Federal n.° 9.263/1996 se mostra compatível com
o ordenamento jurídico.
Partindo de tal ponto, foram estabelecidos os objetivos
específicos seguintes: realizar um estudo analítico-reflexivo da autonomia
privada do indivíduo em se submeter a procedimentos cirúrgicos esterilizantes com
fins contraceptivos, qualificando o direito de não ter filhos como direito fundamental
e da personalidade que se encontra violado pela limitação estatal imposta ao sujeito;
elucidar que não há choque entre dignidade da pessoa humana e autonomia privada
que justifique a interferência do Estado nesse caso específico; analisar a necessidade
de revisão legal do dispositivo que limita o direito fundamental e da personalidade
de não ter filhos.
Com o fito de tratar das questões de análise deste
estudo e atingir os objetivos propostos, lançou-se mão do método dedutivo como base
lógica, a fim de orientar o processo de investigação. Ou seja, partiu- se da formulação
dos problemas gerais e se buscaram posicionamentos doutrinários que os corroborassem
ou negassem, para, no fim, demonstrar a prevalência ou não dos pontos
trazidos à baila.
Para uma melhor análise, o presente trabalho foi
dividido em quatro seções, de forma a permitir um encadeamento lógico de explanação
da temática proposta. Assim sendo, na primeira seção, traçaram-se linhas gerais
sobre a esterilização voluntária e o planejamento familiar, de modo a fixar a
premissa de que o planejamento familiar se consubstancia na livre decisão daqueles
que se unem em sociedade familiar, alertando sobre a existência de embates doutrinários
sobre a Lei n.° 9.263/96, já que ela é tendenciosa a ferir a autonomia privada do
indivíduo e a sua dignidade.
Na segunda seção, tratou-se basicamente dos efeitos
da referida Lei Federal no instituto do planejamento familiar, à medida que se analisaram
o seu texto legal e o modo como ele se mostra danoso ao livre desenvolvimento da
personalidade do ser humano.
Nesse viés, a terceira seção do trabalho arrola
as incompatibilidades da Lei n.° 9.263/96 com os ditames civis e constitucionais,
analisando-se, para tanto, como o direito a não ter filhos é expressão da
dignidade da pessoa humana, da autonomia privada e do livre desenvolvimento da personalidade.
A quarta e última seção focou na necessidade
de revisão da Lei Federal em comento, trazendo algumas considerações sobre o
Projeto de Lei n.° 5.061/2005, que pretendia alterar o texto da Lei n.°
9.263/96, mas que fora arquivado, assim como se fez menção à Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) n.° 5.097, a qual busca a declaração de inconstitucionalidade de um dos dispositivos
da já referida legislação federal e que ainda está entrando em fase de julgamento.
Tendo em vista as considerações já tecidas, em
se considerando a perspectiva dúplice da dignidade como elemento limitador e
integrante (protetivo) dos direitos fundamentais, mostra-se desarrazoado vigorar
a Lei n.° 9.263/96, a qual, como instrumento de limitação da autonomia da vontade
da mulher em se valer de procedimentos cirúrgicos esterilizantes, necessita de justificativa
alicerçada na sua imprescindibilidade para a garantia de outros direitos fundamentais, o que não se verifica no caso em tela, haja
vista que limitar tal autonomia é violar a própria dignidade da pessoa humana.