Por Dra. Gabriela dos Santos Barros
RESUMO: A
discricionariedade administrativa se consubstancia na margem de liberdade
conferida pela lei ao administrador público para proceder ao juízo de
conveniência e oportunidade quanto ao motivo e ao objeto dos atos
administrativos discricionários, elementos esses do ato que compõem o mérito
administrativo. O princípio da juridicidade, por sua vez, é resultado da
releitura do princípio da legalidade, sob a ótica do Pós-Positivismo, havendo a
necessidade da superação das amarras da Administração Pública à estrita
legalidade com vistas à concretização das normas constitucionais, devendo,
todavia, ser observado o limite do princípio da juridicidade, mais precisamente
as matérias sujeitas à reserva legal. Por outro lado, o princípio da
juridicidade acarreta a ampliação do controle judicial dos atos administrativos
discricionários, na medida em que fundamenta o controle judicial de
legitimidade dos atos, isto é, a verificação da conformidade dos atos com os
princípios jurídicos, em especial com os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, o que, todavia, não autoriza ao Judiciário substituir o
juízo do administrador público quanto à conveniência e à oportunidade para o interesse
público, sob pena de ofender o princípio da separação dos poderes.
Palavras-chave:
discricionariedade administrativa; princípio da juridicidade; controle judicial
dos atos administrativos discricionários.
1 INTRODUÇÃO
Elaborou-se o presente artigo jurídico com o
intuito de analisar detidamente a discricionariedade administrativa e o seu
controle judicial sob a ótica do princípio da juridicidade, que é resultado da
reconstrução do princípio da legalidade como consequência da
constitucionalização do Direito
Administrativo no contexto do Pós-Positivismo.
No tocante à metodologia científica, cumpre apontar
que, quanto à abordagem, trata-se de pesquisa de caráter qualitativo,
tendo sido utilizado o método científico dedutivo, na medida em que
se partiu do exame de aspectos gerais da discricionariedade administrativa e do
princípio da juridicidade para se chegar especificamente ao controle judicial
dos atos administrativos discricionários à luz do princípio da juridicidade,
valendo destacar quanto às técnicas de pesquisa que o trabalho se pautou
em documentação indireta, por meio de pesquisa documental e
bibliográfica.
2 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
De acordo com José dos Santos Carvalho Filho (2020),
o ato administrativo é composto pelos seguintes elementos: competência (o
círculo determinado por lei no qual os agentes podem exercer sua atividade de
forma legítima); objeto (o conteúdo do ato, consistindo na mudança no mundo
jurídico pretendida pelo ato administrativo); forma (meio mediante o qual a
vontade é exteriorizada); motivo (as razões de fato e de direito que levaram à
prática do ato administrativo); finalidade (interesse público como intuito da
prática do ato). Desses elementos três são vinculados, mais
precisamente a competência, a forma e a finalidade, enquanto que o motivo e o
objeto podem ser vinculados ou discricionários, de forma que o mérito
administrativo é composto pelo motivo e pelo objeto do ato administrativo
discricionário.
A vinculação consiste na inteira
definição dos elementos do ato administrativo pela lei, não restando margem de
liberdade para o administrador público decidir conforme a conveniência e a
oportunidade para a Administração Pública. Enquanto que a discricionariedade
se consubstancia na possibilidade conferida pela lei de valoração pelo
administrador público da sua conduta no que tange à conveniência e à
oportunidade para o interesse público, juízo esse componente do mérito
administrativo.
A propósito, Marcelo Alexandrino e Vicente
Paulo (2017) elencam, dentre os Poderes da Administração Pública,
o Poder Vinculado como o Poder do qual a Administração se vale
para praticar os atos administrativos plenamente delineados pela lei,
contrapondo-se ao Poder Discricionário, ressalvando, todavia, que o
Poder Vinculado, na realidade, não é propriamente um poder, e sim um dever da
Administração.
Aliás, José dos Santos Carvalho Filho (2020)
entende que, como a vinculação representa uma imposição ao administrador
público, e não uma prerrogativa de direito público, a concepção da vinculação
como Poder da Administração é inadequada, podendo-se falar, por outro lado, em
Poder Discricionário, tendo em vista que esse último de fato se consubstancia
em uma prerrogativa, mais precisamente no poder do administrador de decidir
qual é a conduta mais adequada para o atingimento do interesse público, valendo
citar lição de Carvalho Filho a respeito desse último poder:
Poder discricionário, portanto, é a prerrogativa
concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre várias condutas
possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse
público. Em outras palavras, não obstante a discricionariedade constitua
prerrogativa da Administração, seu objetivo maior é o atendimento aos
interesses da coletividade.
Conveniência e oportunidade são os elementos
nucleares do poder discricionário. A primeira indica em que condições vai se
conduzir o agente; a segunda diz respeito ao momento em que a atividade deve
ser produzida. Registre-se, porém, que essa liberdade de escolha tem que se
conformar com o fim colimado na lei, pena de não ser atendido o objetivo
público da ação administrativa. Não obstante, o exercício da discricionariedade
tanto pode concretizar-se ao momento em que o ato é praticado, quanto, a
posteriori, ao momento em que a Administração decide por sua revogação.
Trata-se,
sem dúvida, de significativo poder para a Administração. Mas não pode ser
exercido arbitrariamente. Conforme tem assinalado autorizada doutrina, o Poder
Público há de sujeitar-se à devida contrapartida, esta representada pelos
direitos fundamentais à boa administração, assim considerada a administração
transparente, imparcial, dialógica, eficiente e respeitadora da legalidade
temperada. Portanto, não se deve cogitar da discricionariedade como um poder
absoluto e intocável, mas sim como uma alternativa outorgada ao administrador
público para cumprir os objetivos que constituem as verdadeiras demandas dos
administrados. Fora daí, haverá arbítrio e justa impugnação por parte da
coletividade e também do Judiciário. (CARVALHO FILHO, 2020)
Ademais, impende proceder a uma revisão de
literatura quanto ao enquadramento ou não dos conceitos jurídicos
indeterminados no campo da discricionariedade. A propósito, José dos
Santos Carvalho Filho define os conceitos jurídicos indeterminados da
seguinte maneira: “termos ou expressões contidos em normas jurídicas, que, por
não terem exatidão em seu sentido, permitem que o intérprete ou o aplicador
possam atribuir certo significado, mutável em função da valoração que se
proceda diante dos pressupostos da norma” (CARVALHO FILHO, 2020).
Diante disso, Carvalho Filho (2020) aponta que não
se confundem com a discricionariedade, uma vez que, ao contrário dos conceitos
jurídicos indeterminados, a discricionariedade não tem como pressuposto
imprecisão de sentido, mencionando, ainda, que o conceito jurídico
indeterminado se insere no antecedente da norma (nesse caso a lei já determina
os efeitos), enquanto que a discricionariedade se situa no consequente (a lei
confere ao administrador o poder de delinear os seus efeitos), de forma que na
discricionariedade o processo de escolha é mais amplo do que nos conceitos
jurídicos indeterminados.
Por outro lado, Marcelo Alexandrino e
Vicente Paulo (2017) registram que, ao seu ver, a doutrina
administrativista atualmente majoritária, na qual se incluem, apontando, ainda,
como expoentes Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, entende que a discricionariedade se verifica não
somente quando a lei confere à Administração Pública a liberdade de decidir
quanto à conveniência e à oportunidade da prática de um ato dentro dos limites
legais, mas também quando a lei se vale de conceitos jurídicos indeterminados
na descrição do motivo da prática de ato administrativo. Todavia, destacam que
Di Pietro ressalva que ainda há elevada polêmica a respeito do enquadramento
dos conceitos jurídicos indeterminados como discricionariedade.
3 PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE
De acordo com a doutrina tradicional acerca do
princípio da legalidade, notadamente Hely Lopes Meirelles (1997),
a Administração Pública está sujeita ao princípio da legalidade, nos termos
do art. 37, caput, da CRFB, só podendo fazer o que a lei autoriza,
ao contrário do particular, que pode fazer tudo que a lei não veda, como se
depreende do art. 5º, II, da CRFB, sendo que, de acordo com Maria
Sylvia Zanella Di Pietro (2018), na seara das relações entre
particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade.
Todavia, no paradigma do Pós-Positivismo,
que, segundo Luís Roberto Barroso (2006), é o marco filosófico do
Neoconstitucionalismo e se caracteriza por ir além da legalidade estrita com
vistas à efetivação dos direitos fundamentais, despontando para tal fim a
normatividade dos princípios jurídicos, faz-se mister a reinterpretação do
princípio da legalidade aplicado à Administração Pública (art. 37, caput, da
CRFB), como defende Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2020), relativizando-se
a partir da constitucionalização do Direito Administrativo a concepção clássica
de vinculação positiva do administrador à lei, resultando dessa reinterpretação
o princípio da juridicidade, que consiste no alargamento do princípio da
legalidade.
Assim, de acordo com o princípio da
juridicidade, o administrador público deve observar o “bloco de legalidade”,
consistente nas normas-princípios e nas normas-regras, englobando, portanto, a
legalidade e a legitimidade, ambas atinentes ao Estado Democrático de
Direito. É nesse sentido o art. 2º, p.u., I, da Lei Federal 9.784,
o qual determina que a atuação administrativa deve se dar conforme a lei e o
direito.
4 CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS
Preliminarmente vale tecer breves comentários
acerca do controle dos atos administrativos discricionários pela própria
Administração Pública a fim de traçar um paralelo com o controle desses atos
pelo Judiciário no exercício da sua função típica (função jurisdicional).
De ofício ou por provocação, no exercício do
seu dever-poder de autotutela, em consonância com as Súmulas 346
e 473 do Supremo Tribunal Federal e o artigo 54 da Lei Federal
9.784 ou o correspondente artigo da lei do processo administrativo do
respectivo ente, a Administração Pública em observância ao princípio da
juridicidade deve, a não ser nos casos de convalidação (artigo 55 da Lei
Federal 9.784), anular seus atos ilegais/ilegítimos em regra com efeitos
“ex tunc” (retroativos), já que ato nulo/anulável não gera direitos, com a ressalva
de que há exceções em que a anulação se dá com efeitos “ex nunc” (não
retroativos), podendo, ainda, revogar seus atos inconvenientes e/ou inoportunos
para o interesse público com efeitos “ex nunc”, respeitados os direitos
adquiridos. Isso tendo em vista que a anulação é resultado do controle de
legalidade/legitimidade, enquanto que a revogação resulta do controle de
mérito.
A propósito, assim como o próprio agente público
editor do ato administrativo pode revê-lo, superior hierárquico pode controlar
quanto à legalidade e ao mérito o ato praticado por subordinado seu, como
apontam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2017), sendo que
apenas a Administração Pública praticante do ato administrativo discricionário
pode revogá-lo. Aliás, o próprio Judiciário, no exercício da sua função
administrativa, que é atípica, é dotado dessa prerrogativa de anular ou
revogar seus próprios atos administrativos de ofício ou por provocação.
Já no exercício da sua função típica (função
jurisdicional), em consonância com o princípio da inafastabilidade da
jurisdição/cláusula de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CRFB), a inércia da
jurisdição (artigo 2º do NCPC) e o princípio dispositivo/princípio da
demanda/princípio da congruência (adstrição do juiz aos pedidos – art. 492 do
NCPC), o Judiciário não pode de ofício controlar os atos administrativos, só
podendo fazê-lo por provocação.
Ademais, o Judiciário não pode realizar controle de
mérito dos atos discricionários editados pelos demais Poderes, isto é, controle
no tocante à conveniência e à oportunidade pertinentes ao motivo e ao objeto do
ato discricionário, não lhe sendo permitido substituir o gestor público quanto
ao juízo de conveniência e oportunidade para a Administração Pública que tenha
sido realizado nos limites legais, sob pena de violação do princípio da
separação dos poderes (artigo 2º da CRFB). Por conseguinte, não se admite que o
Judiciário revogue atos administrativos editados por outros Poderes.
No exercício da função jurisdicional, o Judiciário
controla o ato administrativo quanto à legalidade (análise da conformidade com
a lei) e à legitimidade (exame da consonância com os princípios jurídicos).
Assim, constatando a ilegalidade de algum elemento vinculado do ato, o
Judiciário anula não só ato administrativo vinculado, como também ato
discricionário. Além disso, pode anular ato administrativo em razão da ofensa
aos princípios jurídicos, notadamente os da razoabilidade (origem
norte-americana) e da proporcionalidade (origem alemã), que compõem a acepção
substantiva/material do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da
CRFB) e estão positivados no art. 2º, p.u., VI, da Lei 9784, que assim prevê:
“Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
[...] VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,
restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao
atendimento do interesse público;” (BRASIL, 1999), valendo, ainda, lembrar, na
esteira da doutrina de Robert Alexy, que o princípio da proporcionalidade é
composto por três subprincípios: adequação/idoneidade (aptidão do meio
utilizado à produção do resultado pretendido); necessidade/exigibilidade
(inexistência de outro meio apto à produção do resultado visado e menos gravoso
aos direitos fundamentais como decorrência da proibição do excesso); e
proporcionalidade em sentido estrito (relação positiva de custo-benefício).
Aliás, ato administrativo em tese discricionário
praticado fora dos limites legais é arbitrário e, portanto, ilegítimo, não se
admitindo a sua blindagem por alegação de que foi praticado no exercício da
discricionariedade, alegação essa teratológica, já que a ultrapassagem dos
limites legais da discricionariedade implica que o ato foi praticado fora dela,
de forma que o Judiciário, quando provocado, procederá à sua anulação.
Por oportuno, cita-se lição de Marcelo
Alexandrino e Vicente Paulo a respeito:
Nunca é demais ressaltar que, embora
razoabilidade e proporcionalidade sejam princípios utilizados para controlar a
discricionariedade administrativa, não se trata de controle de mérito
administrativo. Significa dizer: o ato que malfira esses princípios é ilegítimo
(não é meramente inconveniente ou inoportuno) e deve ser anulado (tecnicamente,
não é correto revogar um ato administrativo sob o fundamento de ofensa aos
postulados da razoabilidade e da proporcionalidade).
Assim, o
controle da discricionariedade pelos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade deve ser entendido desta forma: quando a administração
pratica um ato discricionário além dos limites legítimos de discricionariedade
que a lei lhe conferiu, esse ato é ilegal, e um dos meios efetivos de verificar
sua ilegalidade é a aferição de razoabilidade e proporcionalidade. Ainda que a
administração alegue que agiu dentro do mérito administrativo, pode o controle
de razoabilidade e proporcionalidade demonstrar que, na verdade, a
administração extrapolou os limites legais do mérito administrativo,
praticando, por isso, um ato passível de anulação (controle de legalidade ou
legitimidade), e não um ato passível de revogação (controle de mérito, de
oportunidade e conveniência administrativas, que é sempre exclusivo da própria
administração pública). (ALEXANDRINO; PAULO, 2017, p. 261, grifos inseridos)
A propósito, segundo Rafael Carvalho
Rezende Oliveira (2020), após a superação da ideia de imunidade
judicial da discricionariedade, diversas teorias buscaram explanar e legitimar
o controle judicial da atuação estatal discricionária, notadamente as três teorias
a seguir: Teoria do Desvio do Poder/Desvio de finalidade, teoria
essa que possibilita ao Judiciário anular ato que esteja em descompasso com a
finalidade da norma; Teoria dos Motivos Determinantes, segundo a
qual, mesmo nos casos excepcionais em que a lei não exige a motivação do ato,
isto é, a exposição dos motivos de fato e de direito que ensejaram a sua
prática, caso seja motivado, a sua validade dependerá da correspondência dos
motivos expostos com a realidade; Teoria dos Princípios Jurídicos/Juridicidade,
de acordo com a qual, a incompatibilidade dos atos administrativos com os
princípios jurídicos acarreta a sua invalidade, valendo citar como exemplo
célebre a Súmula Vinculante 13 do STF, cuja inteligência é no
sentido de que a vedação do nepotismo na Administração Pública
independe da edição de lei formal, decorrendo diretamente dos princípios
jurídicos da moralidade administrativa, da impessoalidade, da isonomia e da
eficiência (art. 37, caput, da CRFB), como se depreende da Tese fixada pelo STF
quanto ao Tema 66 de repercussão geral, tendo como “leading case” o
RE 579.951, “in verbis”:
Tema 66 - Reserva de lei para a vedação de
nepotismo no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo.
Tese: A
vedação ao nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática,
dado que essa proibição decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37,
caput, da Constituição Federal. (BRASIL, 2008)
Segue ponderação de Rafael Oliveira acerca
da Teoria dos Princípios Jurídicos (Juridicidade) para fins de controle dos
atos discricionários:
A
juridicidade, como se vê, amplia a margem de controle do ato discricionário
levada a efeito pelo Judiciário. E isso não para permitir a apreciação do
mérito administrativo propriamente dito, porque importaria em inadmissível
violação ao princípio da separação de poderes, mas para garantir que o mérito
da atuação administrativa não seja um artifício ou escudo à violação, por via
transversa, da ordem jurídica pelo administrador. Contudo, com o
intuito de evitar uma simples troca da arbitrariedade administrativa pela
judicial, é indispensável a justificação da decisão judicial, como elemento
essencial para sua legitimidade, pois só assim há possibilidade do controle
“final” pelos “donos do poder” (o povo). (BRASIL, 2020, grifos
inseridos)
No tocante ao controle judicial das
políticas públicas, que se inserem na seara da discricionariedade
administrativa, também denominado de “judicialização da política” ou “politização
da justiça”, constata-se atual tendência jurisprudencial no sentido da
possibilidade jurídica desse controle, notadamente nos casos de inércia estatal
injustificável ou de abusividade estatal, com fulcro na Teoria do
Mínimo Existencial, cujo conceito se extrai da ementa da decisão prolatada
na ADPF 45 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, “in verbis”:
EMENTA:
Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade
constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de
implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade
governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao
Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos
direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de
conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do
possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da
integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade
instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das
liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (BRASIL,
2004, grifos inseridos)
Como aponta José dos Santos Carvalho Filho
(2020), essa postura mais ativa do Judiciário é denominada por
doutrinadores de “ativismo judicial”, sendo alvo de críticas
doutrinárias em razão do risco de a ingerência do Judiciário em áreas típicas
de gestão administrativa acarretar a violação do princípio da separação dos
poderes.
Dentre diversas decisões no sentido da
possibilidade do controle judicial de políticas públicas, também vale
citar decisão do Supremo Tribunal Federal prolatada na ADPF 347 MC,
valendo-se da noção de “Estado de Coisas Inconstitucional” utilizada em
decisões da Corte Constitucional da Colômbia:
CUSTODIADO
– INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de
descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das
penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO
CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente
quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente
de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação
depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e
orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como
“estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL –
VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o
interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário
Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados
juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e
Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em
até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do
preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do
momento da prisão. (BRASIL, 2016, grifos inseridos)
Em sentido oposto ao “ativismo judicial”, desponta
a “autocontenção judicial”, caracterizada por uma postura mais passiva
do Judiciário como consequência da maior deferência à decisão do administrador
público especialmente na seara da discricionariedade técnica, correspondente às
matérias complexas e técnicas, que demandam “expertise” para a definição da
solução mais adequada à satisfação do interesse público, “expertise” essa da
qual o Judiciário carece, o que se verifica notadamente no âmbito das Agências
Reguladoras. Nessa linha, seguem fascículos da ementa de recente
decisão do Superior Tribunal de Justiça pautada na Doutrina Chenery:
[...] PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO
ADMINISTRATIVO PRATICADO PELO PODER PÚBLICO QUE PREVALECE ATÉ PROVA DEFINITIVA
EM CONTRÁRIO. DETERMINAÇÃO GOVERNAMENTAL QUE DEVE SER PRESTIGIADA TAMBÉM PARA
MITIGAR A PROBLEMÁTICA DO DÉFICIT DEMOCRÁTICO DO PODER JUDICIÁRIO.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOUTRINA CHENERY. DIFICULDADE DE O JUDICIÁRIO CONCLUIR SE
UMA ESCOLHA CUJA MOTIVAÇÃO É ALEGADAMENTE POLÍTICA SERIA CONCRETIZADA CASO A
ADMINISTRAÇÃO EMPREGASSE SOMENTE METODOLOGIA TÉCNICA. IMPOSSIBILIDADE DE AS
ESCOLHAS POLÍTICAS DOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS SEREM INVALIDADAS PELO JUDICIÁRIO,
CASO NÃO SEJAM REVESTIDAS DE RECONHECIDA ILEGALIDADE.
[...] em análise de controvérsia sobre estipulação
de remuneração pelo uso de transporte coletivo, o Supremo Tribunal Federal
consignou que "o reajuste de tarifas do serviço público é manifestação de
uma política tarifária, solução, em cada caso, de um complexo problema de
ponderação entre a exigência de ajustar o preço do serviço às situações
econômicas concretas do seguimento social dos respectivos usuários ao
imperativo de manter a viabilidade econômico-financeiro do empreendimento do
concessionário" (RE n.º 191.532/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira
Turma, julgado em 27/5/1997, DJ de 29/8/1997).
3. Cármen Lúcia Antunes Rocha leciona que a
discriminação tarifária torna possível, "nessa distinção de usuários em
condições econômicas e sociais desiguais, a efetivação da igualdade jurídica e
da concreta justiça social" (Estudo sobre Concessão e Permissão de Serviço
Público no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 101). Na mesma
obra, contudo, ressalta a dificuldade de se fixar tarifa pública com fundamento
no princípio da isonomia. 4. Assim, a evidente sofisticação da demanda
ventilada na causa principal impede que a Presidência do Superior Tribunal de
Justiça julgue questões relativas ao mérito do reajuste determinado pelo Poder
Público - notadamente para concluir sobre discriminação ou injustiça na fixação
de preço para uso de transporte público. [...]
5. A interferência judicial para invalidar a
estipulação das tarifas de transporte público urbano viola gravemente a ordem
pública. A legalidade estrita orienta que, até prova definitiva em contrário,
prevalece a presunção de legitimidade do ato administrativo praticado pelo
Poder Público (STF, RE n.º 75.567/SP, Rel. Min. DJACI FALCÃO, Primeira Turma,
julgado em 20/11/1973, DJ de 19/4/1974, v.g.) - mormente em hipóteses como a
presente, em que houve o esclarecimento da Fazenda estadual de que a
metodologia adotada para fixação dos preços era técnica.
6. A cautela impediria a decisão de sustar a
recomposição tarifária estipulada pelo Poder Público para a devida manutenção
da estabilidade econômico-financeira dos contratos de concessão de serviço
público. Postura tão drástica deveria ocorrer somente após a constatação,
estreme de dúvidas, de ilegalidade - desfecho que, em regra, se mostra possível
somente após a devida instrução, com o decurso da tramitação completa do
processo judicial originário.
[...]
8. O Magistrado Singular concluiu que os reajustes
tarifários seriam discriminatórios, por deixar de atingir parte dos usuários e
incidir sobre outros. Estimou que estava a adotar, assim, a medida que reputou
mais justa. Não se pode esquecer, entretanto, que o exercício da ponderação
exige critérios, entre os quais, a adoção de solução que reduza "a tensão
gerada pela falta de legitimidade representativo-democrática do juiz para
realizar opções normativo-axiológicas", conforme leciona Paulo Gustavo
Gonet Branco (Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 305). Dessa forma, o ato administrativo editado pelo Estado
de São Paulo deve ser prestigiado também para mitigar a problemática do déficit
democrático do Poder Judiciário.
9. Eventual intento político da medida não poderia
ensejar a invalidação dos critérios tarifários adotados, tout court. Conforme
leciona Richard A. Posner, o Poder Judiciário esbarra na dificuldade de
concluir se um ato administrativo cuja motivação alegadamente política seria
concretizado, ou não, caso o órgão público tivesse se valido tão somente de
metodologia técnica. De qualquer forma, essa discussão seria inócua,
pois, segundo a doutrina Chenery - a qual reconheceu o caráter político
da atuação da Administração Pública dos Estados Unidos da América -, as cortes
judiciais estão impedidas de adotarem fundamentos diversos daqueles que o Poder
Executivo abraçaria, notadamente nas questões técnicas e complexas, em que os
tribunais não têm a expertise para concluir se os critérios adotados pela
Administração são corretos (Economic Analysis of Law. Fifth Edition.
New York: Aspen Law and Business, 1996, p. 671). Portanto, as escolhas
políticas dos órgãos governamentais, desde que não sejam revestidas de
reconhecida ilegalidade, não podem ser invalidadas pelo Poder Judiciário.
10. Impedir judicialmente o reajuste das tarifas a
serem pagas pelos usuários também configura grave violação da ordem econômica,
por não haver prévia dotação orçamentária para que o Estado de São Paulo
custeie as vultosas despesas para a manutenção do equilíbrio
econômico-financeiro dos acordos administrativos firmados pelo Poder Público
com as concessionárias de transporte público.
11.
Agravo interno desprovido. (BRASIL, 2017, grifos inseridos)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Ex positis”, conclui-se que, se por um lado, o princípio da juridicidade desamarra a Administração Pública da estrita legalidade, com vistas à efetivação das normas constitucionais e especialmente à concretização dos direitos fundamentais, observadas as matérias sujeitas à reserva legal, por outro lado, implica a ampliação do controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário no exercício da sua função típica (a jurisdicional), cumprindo, ainda, destacar que o Judiciário não pode se valer da possibilidade de controle judicial de legitimidade (conformidade com os princípios jurídicos) como subterfúgio para se imiscuir indevidamente no mérito dos atos administrativos discricionários editados pelos demais Poderes, sob pena de ofender o princípio da separação dos poderes.
Confira na íntegra na Revista Jus Navigandi