O novo Código de Processo
Civil atribuiu aos Estados, em determinadas hipóteses, a obrigação processual de realizar o pagamento da
remuneração do perito quando o adimplemento da perícia for de responsabilidade
de parte beneficiária da gratuidade da
justiça (art. 95, §3º, II, do CPC[1]), ainda que o ente público
não integre a relação processual de origem.
Essa obrigação, a propósito, conforma-se com o postulado
constitucional segundo o qual o Estado “prestará assistência jurídica integral e gratuita
aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV, da Constituição da República).
Não obstante o relevo e a importância desse encargo, a questão que
exsurge é a seguinte: o Estado deve ser obrigado ao pagamento do perito, nos
termos do art. 95, caput, do CPC[2], ainda que não seja ônus do beneficiário da
gratuidade de justiça a comprovação do
fato objeto da prova pericial?
A resposta parece-nos negativa.
De início, há necessidade de se perquirir se a relação processual
de origem – na qual o Estado foi instado a realizar o pagamento da perícia -
possui caráter consumerista, de modo
que seja possível a inversão do ônus probatório e, consequentemente, a
atribuição do dever de pagamento da perícia à parte contrária, ou seja, aquela
que litiga contra o consumidor –
beneficiário da gratuidade.
Uma dessas situações se revela no contexto das ações ajuizadas por
consumidores em face de instituições financeiras (bancos) visando a anulação de contratos em razão de alegada
fraude, sobretudo na assinatura do
ajuste.
Esse tipo de demanda encerra, como se sabe, típica natureza
consumerista, como aliás já pacificou o Superior Tribunal de Justiça por meio
da súmula n. 297 da Corte Guardiã da legislação federal.
Sendo certo que se trata de relação de consumo, o ônus da prova –
ou seja, o dever processual de
comprovar a efetiva e válida celebração do contrato com o consumidor - em tais
casos, é da instituição financeira, seja em razão da alegada falha na prestação
de serviço (art. 14 do CDC), seja por força da hipossuficiência técnica da parte consumidora (art. 6º, VIII, do
CDC).
Nesses casos, pois, estão presentes os requisitos ou condições processuais para a inversão do ônus da prova, de maneira
que se torna incumbência do réu (instituição financeira) a prova da efetiva celebração
do contrato pela parte consumidora (autora).
A propósito, essa inversão do ônus da prova também tem lugar no artigo 373, §1º, do CPC,
na medida em que a comprovação da celebração do ajuste é mais fácil à
instituição financeira, uma vez guardiã dos contratos celebrados no âmbito de
suas atividades negociais.
Com efeito, se a instituição financeira detém o ônus processual de
comprovar a efetiva celebração do contrato impugnado
em juízo pelo consumidor (cf. interpretação dos arts. 373, §1º, do CPC e 14 e 6º, VIII, do
CDC), por certo é também dela – não da Fazenda Pública - o dever do pagamento dos honorários do perito, cujo mister consiste,
exatamente, na aferição da conformidade da assinatura do consumidor presente no
contrato (perícia grafotécnica).
Nesse específico quadro, portanto, a inversão do ônus da prova acarreta
a própria inversão do custeio da prova; se a instituição financeira eventualmente
não desejar produzir a prova pericial, deverá arcar com as consequências
processuais daí decorrentes, a exemplo da presunção de veracidade dos fatos
alegados pelo autor (art. 341 do CPC).
A rigor, o custeio da prova (pagamento da perícia) não é um dever
da instituição financeira, não é uma obrigatoriedade; no entanto, em
virtude de possuir o ônus processual da comprovação da regularidade da
contratação, se a instituição financeira não vir a requerer a prova
pericial – e não a custear, por consequência – os fatos alegados pelo autor
serão presumidamente verdadeiros.
Diga-se de passagem, seja qual for a modalidade de inversão do ônus
probatório, quer dizer, ope legis, ou
seja, em virtude da lei consumerista (falha na prestação do serviço, art. 14 do
CDC), ou ope judicis, em razão de
determinação judicial, parece-nos certo que a inversão acarreta uma escolha à parte a quem designado o ônus:
ou produz a prova pericial e realiza seu competente custeio ou nada produz e,
assim, assume o risco de tornar presumidamente verdadeiros os fatos aduzidos
pelo autor/consumidor.
Essas conclusões foram recentemente ratificadas pelo STJ que fixou a seguinte tese sob a
sistemática dos recursos especiais repetitivos:
“Para os fins do art. 1.036 do CPC/2015,
a tese firmada é a seguinte: "Na
hipótese em que o consumidor/autor impugnar a autenticidade da assinatura
constante em contrato bancário juntado ao processo pela instituição financeira,
caberá a esta o ônus de provar a sua autenticidade (CPC, arts. 6º, 368 e 429, II)[3].
Na decisão colegiada em questão, ficou consignado, expressamente,
que a instituição financeira deverá comprovar a autenticidade da assinatura da
parte consumidora quando houver impugnação, podendo adotar, se
quiser, a prova pericial; se resolver adotá-la, deve necessariamente custear os honorários
periciais no caso concreto.
Em virtude dessa solução processual
é que a Fazenda Pública não deve ser
obrigada ao pagamento de honorários periciais nas demandas ajuizadas por
consumidores em face de instituições financeiras sob alegação de fraude
contratual, uma vez que o ônus da comprovação da regularidade da assinatura
firmada no ajuste é inteiramente da parte não beneficiária da gratuidade, ou seja,
a instituição financeira.
Antes mesmo da fixação da supracitada tese pelo STJ, o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins,
encampando a solução aqui proposta e após provocação da Procuradoria-Geral do
Estado, já vinha afastando a responsabilidade do Estado quanto ao pagamento dos
honorários periciais no contexto ora apresentado[4].
A obrigação de o Estado realizar o pagamento de perícia em processo
do qual não fez parte, portanto, passa ao
largo da simples aplicação dos requisitos artigo 95, §3º, do CPC; é
necessário averiguar se não se está diante de uma relação processual de caráter
consumerista, oportunidade em que,
havendo inversão obrigatória do ônus da prova, não seja a Fazenda Pública
compelida, desmedidamente, ao contínuo desembolso de recursos públicos.
Procurador do Estado do Tocantins, advogado, especialista em
Processo Civil, ex-analista judiciário, ex-assessor de Desembargador,
ex-servidor do Ministério da Fazenda. É membro da Comissão da Advocacia Pública
da OAB/TO e está na Presidência da Associação dos Procuradores do Estado do
Tocantins.
[1] Art. 95. Cada parte
adiantará a remuneração do assistente técnico que houver indicado, sendo a do
perito adiantada pela parte que houver requerido a perícia ou rateada quando a
perícia for determinada de ofício ou requerida por ambas as partes. (...) § 3º Quando o
pagamento da perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da
justiça, ela poderá ser: (...) II - paga com recursos alocados no
orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada
por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal
respectivo ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça.
[3] (REsp 1846649/MA, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 24/11/2021, DJe 09/12/2021).
[4] Por todos, o
seguinte julgado: TJTO, Agravo de Instrumento, 0010722-85.2021.8.27.2700, Rel. ADOLFO AMARO
MENDES, 5ª TURMA DA 2ª CÂMARA CÍVEL , julgado em 10/11/2021, DJe 23/11/2021.