63 3215-8788

Artigo: O Neoconstitucionalismo e o dilema das decisões judiciais diabólicas

Publicado: 13/07/2021 - 11:39

Foto: Jax James Garcia Pontes


O ordenamento jurídico mundial evoluiu significativamente a partir de meados do Século XX, ganhando novo enfoque de irradiação, mais ativo, lastreado em normas gerais de proteção a uma existência plena e digna do homem.

Com base nesse cenário, a visão liberal da atuação do Estado passou por gradativa e fundamental alteração, visando o bem-estar do ser humano dentro do meio social, como parte indispensável para o harmônico e próspero desenvolvimento de toda a coletividade, de modo que o constitucionalismo contemporâneo, indo além dos ideais iluministas, passou do absenteísmo estatal para o ativismo protecionista do homem, enquanto ser singular e detentor de direitos existenciais, sedimentando, assim, o Neoconstitucionalismo.

Diante desse prisma, coloca-se em evidência a responsabilidade dos Poderes constituídos em viabilizar a efetivação dos direitos fundamentais que garantam o mínimo existencial da pessoa humana, refletindo, por sua vez, a judicialização desenfreada de pretensões embasadas em uma Constituição dirigente.

Não obstante a inderrogável competência do Poder Judiciário, são recorrentes os provimentos jurisdicionais, individuais ou coletivos, que causam maior tumulto e insegurança na sociedade do que a própria resolução, em tese, da lide, externando decisões inviáveis de serem cumpridas do ponto de vista administrativo-financeiro, ou inconvenientes socialmente, e que relegam a segundo plano nítidos interesses de maior relevo, minando a almejada efetividade das decisões judiciais, já que estas se tornam inexequíveis ou acarretam efeito inverso à pacificação social.

Importante destacar que a noção de efetividade das ordens jurisdicionais deve ser compreendida como conceito amplo socialmente, não apenas observado sob o enfoque do resultado entregue ao beneficiário imediato da medida. Isto, porque, o cumprimento da ordem poderá implicar prejuízo identificável e concreto a terceiro alheio ao fato, e, até mesmo, à coletividade, cujos objetos jurídicos de interesse tenham a mesma ou maior envergadura de importância no caso concreto.

De tal forma, inexiste efetividade se para a implementação pelo destinatário do provimento jurisdicional não há meios materiais para que se conceda o respectivo cumprimento, bem como se a ordem implica gravame igual ou maior para a coletividade ou para terceiro amparado por direito irradiado com a mesma intensidade, no caso sub judice.

No que se refere ao sistema jurídico nacional, e que diz respeito exclusivamente às demandas de prestações positivas pelo Estado, parece existir meios processuais e métodos de interpretação aptos para solucionar esse problema, o qual aparentemente surge quando não há a efetiva utilização desses instrumentos, principalmente pela ausência de um diálogo institucional prévio à decisão judicial e de uma análise objetiva acerca da realidade social e administrativa vivenciada pelo ente político.

Convém citar, como exemplo, a decisão monocrática proferida pelo insigne Ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 701, que determinou aos entes políticos a abstenção “de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da covid19” (DJE nº 62, divulgado em 05/04/2021).

A liminar, à época, ainda foi além. O douto Ministro da Corte Suprema definiu os protocolos sanitários para a prática dos cultos, missas e reuniões, adentrando em questionável seara condizente ao poder de polícia, típico da atividade administrativa realizada pelo Poder Executivo, o que afrontaria, teoricamente, o princípio constitucional da separação de Poderes.

Decisões como a mencionada, ainda que envolvam, dentre outros, direito constitucional de liberdade de reunião e de exercício de culto religioso, sugerem sério impacto à saúde pública, porquanto vão de encontro a estudos científicos de medidas preventivas de disseminação do vírus, possibilitando o risco ao contágio.

Oportuno esclarecer, como de conhecimento notório, que essa decisão monocrática foi posteriormente reformada pela maioria dos membros do Pleno do Supremo Tribunal Federal (9×2), restando vencedor o voto do Ministro Gilmar Mendes.

De qualquer modo, deve-se trazer à lume que a tutela de urgência inicialmente deferida é uma situação clara de decisão judicial “diabólica”, termo que se utiliza em comparação à terminologia consagrada das provas diabólicas, que são aquelas impossíveis ou excessivamente difíceis de serem produzidas.

O sentido a que se empresta às decisões judiciais é expressado pela impossibilidade, dificuldade, inconveniência, ou, ainda, ilegitimidade no cumprimento de uma decisão de tamanho relevo, que reflete na própria (in)efetividade do mandamento jurisdicional proferido.

Não se olvida que o texto constitucional é interpretado como a busca de sua plena eficácia, com base na expectativa de materialização dos direitos fundamentais gerada pela própria Constituição, e, consequentemente, pelos Poderes do Estado, de modo que, no esteio dessa concepção, e lastreado na recalcitrância do Estado em tornar reais direitos fundamentais da pessoa humana, surge como consequência o ativismo judicial, por meio da provocação jurisdicional pelas instituições de controle e por pretensões individualizadas dos cidadãos.

Contudo, é certo que a intervenção do Judiciário, quando envolve conflito de normas constitucionais, nem sempre é pacificadora ou estabilizadora, porquanto há casos em que sua interferência causa maior desordem e instabilidade social, administrativa e financeira, colocando-se, em muitas oportunidades, como verdadeiro gestor público ou agente legiferante.

Parece coerente que, mesmo se tornando necessária sua autoridade, o Judiciário deve realizar diálogo institucional com o Poder Executivo, e, até mesmo, com eventuais outros intérpretes do ordenamento constitucional, inclusive representantes da sociedade civil, por meio, dentre outros, do instituto do amicus curiae, para deliberar e se chegar a uma definição viável dentro da realidade vivenciada pelo Estado Nação.

Decisões judiciais precipitadas, com nítido caráter ilegítimo ou inoportuno, principalmente advindas de pretensões que poderiam ser analisadas pelos órgãos colegiados dos tribunais, maquiadas com os requisitos para os provimentos processuais de urgência, causam imenso transtorno à atividade administrativa e à ordem social, ferindo, até mesmo, a harmonia entre os Poderes.

Na verdade, deliberações dessa natureza vão de encontro à efetividade jurisdicional, pois são inviáveis de cumprimento na seara administrativa ou distantes da efetiva justiça ao agredirem direitos de igual ou maior valor hermenêutico-constitucional no caso concreto, consubstanciando em verdadeiros provimentos judiciais diabólicos.

Resta plausível a utilização, em situações concretas, de princípios instrumentais para aplicação das normas constitucionais, destacando-se o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do poder público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.

Nesse prisma, a racionalidade jurisdicional livre de subjetivismo hermenêutico do julgador, combinado com a participação efetiva dos intérpretes constitucionais, principalmente pela intervenção ativa e prévia das autoridades executivas, as quais possuem a expertise técnica acerca da política pública almejada enquanto direito fundamental, parece ser o caminho para conferir legitimidade jurídica e prática na materialização de uma sociedade mais justa e fraternal.

Fonte: Revista Justiça & Cidadania


Praça dos Girassóis , s/n. Esplanada das Secretarias, Plano diretor- Centro. Palmas-TO, CEP: 77.054-940

63 3215-8788