Foto: José Humberto P. Muniz Filho
Da vereda do “ser” à “Pedra do Reino”
Aos que não leem: digam-lhes que as contas públicas – de fato – vão mal; digam-lhes que a soma de prestações positivas e negativas atribuídas ao Estado não é de soma zero, mas uma equação de crenças exógenas sem resultado, em um emaranhado de prejuízos; digam-lhes que o Estado é um “litigado” frívolo pela frivolidade de outros.
Eis o “ser”. Um Estado marcado pelo conflito, pela sensação de que todos mandam, de que ninguém obedece e do Executivo a que tudo se atribui.
Neste ponto, o Executivo deixa de ser uma LTDA. e se lança a uma abertura de capital repentina, que o torna uma S.A.. Agora, o affectio societatis é diluído. O interesse em lucros, dividendos, juros sobre o capital próprio, anteveem às obrigações do modelo primevo – tudo isso, em maior parte, levado pelos “sócios”, e não pelos “administradores”.
A vereda é estreita e espinhada por burocracia, reformas, “reformas”. Por certo, reformas de palavras não importam tanto como o que elas contam ao final – no todo. Assim como os números. Estes sempre “contam” e complicam, como um relatório de gestão fiscal (RGF) ou um demonstrativo de resultado do exercício (DRE).
Entre o “ser” e a vereda, o advogado público, ou, advogado de Estado.
Na sua essência, a advocacia de Estado é instrumento de concretização do Estado de Direito no cotidiano dos Entes, dos agentes, dos órgãos e da burocracia como um todo.
No Brasil real, maravilhoso e fantástico, de Machado, teriam os advogados de Estado o espírito cavalariano daqueles que se embrenham na caatinga com resiliência, valentia, humildade e coragem. Seriam, inclusive, verdadeiros “generalistas das ciências humanas”, como se referia J.J. Calmon de Passos a certos espécimes.
No Brasil formal, caricato, adornado, também de Joaquim Maria, seriam os players do mercado, os agentes de orientação e representação do Estado, os executores da procuratura dos Entes, nos dizeres do Mestre Diogo.
Para não ser mais do mesmo ou peça de museu de grandes novidades, a síntese do real ao formal, do advogado de Estado, conflui no espírito político, na capacidade de teorização, no senso de realidade e na perspicácia econômica de sua atuação.
O produto desta operação mostra a eficiência da advocacia de Estado, na administração dos reclames ao (e do) Poder Executivo.
Hoje, o maior desafio técnico da advocacia de Estado é a sua perspicácia econômica.
Em uma “S.A.”, os “direitos” e “bonificações” dos seus players são critérios de análise fundamentalista prescindíveis quando vultuoso e justificável o volume de resultado. O problema não está nessas rubricas. Aliás, o problema não é de per si, mas de dever ser, de dormitar.
O advogado de Estado é agente econômico racional imediato do Poder Público. Prevenção e litigiosidade são números em orçamentos, despesas e dívidas postos em jogo sob uma “matriz de risco” volvida pelas Procuradorias, as quais ponderam o sucesso do empreendimento jurídico e os custos aportados.
O advogado de Estado exerce economia. Não só sob a cantilena de ajuizamento de “x” milhões de reais em execução fiscal, bloqueios, da direção jurídica de autarquias (como recentemente se pacificou no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade/ ADI nº 4.484), gestão de precatórios ou patrimônio do Ente, controle interno, mas economia em sentido refinado. A economia cuida da otimização e eficiência da alocação dos recursos escassos, fê-la da maximização das preferências pessoais dos agentes, de suas interações e decisões.
A seu turno, as veredas diárias da advocacia de Estado têm, em comum, os cactos da escassez de recursos e as cobranças por resultados que demandam decisões e atos concertados. Exige-a, pois, escolhas racionais, economicidade e dinamismo. Acontece que, de sobremodo, a base da teoria econômica moderna vem da teoria da escolha racional e dos seus três pilares: as preferências naturais do agente econômico (ou seu representado); a completude, que traduz a capacidade de ordenar essas preferências; e, por último, a compatibilidade lógica e o poder de maximização daquelas, que é a transitividade.
Muito de burocratas são apregoados, pouco de estadistas e nem com picardia são pensados como agentes econômicos, os advogados de Estado. Contudo, no desempenho da advocacia de Estado, há análise de custos-benefícios (e.g., dispensa de recursos, estruturação e modelagens de parcerias público-privadas/ PPPs, etc.); análise de comportamentos estratégicos (parâmetro da teoria dos jogos), em especial em demandas repetitivas (e.g., questões de pessoal, data-base, progressões, etc. – matérias comuns aos feitos das procuradorias) e pontuais (como a tutela do equilíbrio atuarial em ações de ressarcimento de institutos de previdência, bem como tutela dos instrumentos econômicos ambientais); construção de um ambiente de negócios favorável aos players de mercado, com criatividade e utilitarismo (e.g., segurança na modelagem jurídica de licitações comuns, concessões, seja por meio de pareceres ou atuação em Cortes de Contas).
O julgamento do Recurso Especial nº 870.947/SE é exemplo festivo da posição econômica aqui trabalhada. O decisum e sua série de embargos declaratórios escrutinaram toda a sistemática de índices de juros e correções nas condenações em face da Fazenda Pública.
Por falar em números, a declaração de inconstitucionalidade da TR como índice de correção e a negativa de modulação dos seus efeitos (análise do art. 1º-F da Lei nº 9.494/1997), no ED-Quatro do RE nº 870.947/SE, cujo Acórdão foi publicado em 03/02/2020, contabiliza um diferencial de perda que supera 320%, em certos casos, quando aplicado o IPCA-E nas condenações genéricas (excluídas as tributárias, em regra, as quais variam com o índice utilizado na cobrança).
Por exemplo, no ano contábil de 2016 (jan/dez), o acumulado do IPCA-E foi em torno de 6,4%, enquanto que a TR/Bacen ficou pouco abaixo de 2% no mesmo período (próxima a 1,9944%). Assim, em uma condenação hipotética de um milhão de reais, a Fazenda passa a pagar pela correção, no período ilustrado, R$ 64.000, ao invés de R$ 19.944.
Qual é a importância desses cálculos e a relação com a ideia de escolha racional dos advogados de Estado? Estes profissionais devem se apropriar das prioridades, preferências e completude dos cálculos e da sua atuação a fim de orientar os demais integrantes da Administração Pública, sobretudo do Executivo, na gerência de conflitos, dispensa de recursos, políticas de acordo, implementação de políticas públicas, segurança jurídica e adimplementos dos seus contratos, etc. – todo o engodo econômico próprio de consultores financeiros.
Ainda no espectro econômico, aparece uma situação curiosa própria das idiossincrasias do foro. No Estado do Tocantins, o seu Tribunal de Justiça entendeu “por bem” editar a Recomendação nº 004/2020, cujo objeto “sugere” às Fazendas Públicas “executadas” a apresentação “espontânea”, ao cabo de ato ordinatório de intimação, de memorial dos cálculos, no prazo de 30 dias, tendo como fundamento o art. 526 do Código de Processo Civil (CPC).
Primeiro, sob premissas econômicas, o “preço de reserva” em inaugurar um cumprimento invertido ou apresentar cálculos é calculado pelo Executado, que já é devedor – vetor econômico-comportamental básico de qualquer negócio.
Segundo, olvidou-se o comando “impositivo” (sic) do art. 534 do CPC, que fixa a obrigação do exequente a apresentar demonstrativo de cálculos.
Enfim, nobres senhores e damas gentis, das veredas da caatinga à Pedra do Reino, de Dom Ariano Vilar Suassuna e Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, Dom Pedro IV, o “decifrador”, cabe à advocacia de Estado não se forjar, compreender, mostrar e esperar o seu papel nessa epopeica e bandeirosa caminhada de concretizar (ainda mais) políticas públicas e sociais formuladas pelo (e para) o real, não amuralhadas ou afugentadas por idealismos, mas com números e responsabilidades, no equilíbrio dos Três Poderes “ou dos Três Reinos, que, lá na epopeia de Suassuna, foram os Reinos do Cariri, da Espinhara e do Pajeú”, ainda que se recaia na ambivalência de economistas, CEO’s, contadores ou cronistas.
Fonte: Revista Justiça & Cidadania