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Os precedentes e a cultura do “ementismo”

Publicado: 06/01/2021 - 22:48
Imagem: ASCOM ANAPE

Não é novidade que as modificações legislativas no processo civil brasileiro informam uma política de concentração judicial, em que teses definidas a partir de poucos casos são utilizadas para a solução de diversos processos judiciais. Estabelecido, assim, o que se convencionou denominar de um sistema de precedentes obrigatórios, torna-se imperioso aos operadores do Direito refletir não apenas sobre as condições de formação desses precedentes e as regras de redação dos acórdãos, mas também se atentar para a construção da regra judicial derivada do precedente (razão de decidir – ratio decidendi) e as situações de aplicação adequada da tese. Nesse âmbito, um dos desafios centrais para que nosso sistema de precedentes funcione de modo adequado é o problema da cultura do ementismo, que, do ponto de vista judicial, deveria ser superada em atenção à regra de fundamentação do art. 489, § 1º, V do Código de Processo Civil (CPC) de 2015.

Para ilustrar o ponto, vejamos duas situações envolvendo a Fazenda Pública nas quais a cultura do ementismo pode atrapalhar o operador do Direito, seja prejudicando a correta aplicação do referido sistema, seja o impedindo de explorar os pontos sensíveis e importantes sobre os quais os tribunais se manifestaram na apreciação dos casos repetitivos.

No julgamento de acórdão proferido em Apelação Cível pela 3ª Turma da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, o órgão julgador manteve a sentença que extinguiu execução fiscal proposta pelo Estado do Tocantins, sob o fundamento de nulidade da execução porque a certidão de dívida ativa carecia dos requisitos de certeza e liquidez. A CDA representava crédito estadual decorrente de obrigação de reposição ao erário pelo recebimento indevido de remuneração por servidor público, indicando o número do respectivo processo administrativo.

De acordo com o voto condutor do acórdão, a pretensão de reposição deveria ser efetivada por meio de ação própria (pelo procedimento comum), permitindo fase de conhecimento com dilação probatória. Alegou, assim, ser indevida a inscrição dos respectivos valores em dívida ativa, diante da incerteza e iliquidez do crédito.

Como forma de sustentar o alegado, efetivou-se referência ao acórdão proferido no REsp 1.350.804/PR, submetido à sistemática dos recursos repetitivos (tema repetitivo nº 598), com a citação da respectiva ementa. Aduziu o voto condutor que, na decisão em questão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teria firmado o “entendimento no sentido de que não é possível cobrança, por meio de execução fiscal, de créditos não-tributários decorrentes de pagamento indevido de benefício previdenciário”. Por isso, concluiu que “segundo entendimento externado no citado julgado, tem-se como inviável a inscrição em dívida ativa de valores supostamente pagos indevidamente e, por consequência, a sua cobrança por meio de execução fiscal, ainda que a Lei nº 6.830/1980 admita também a exigência de dívidas não tributárias”.

Sem prejuízo de ressalva indicada de forma discreta na ementa do REsp 1.350.804/PR (“4. Não há na lei própria do INSS [Lei nº 8.213/1991] dispositivo legal semelhante ao que consta do parágrafo único do art. 47, da Lei nº 8.112/1990”), a análise do inteiro teor do acórdão permite identificar que o STJ ressalvou que a tese não se aplicava à reposição ao erário de valores indevidamente recebidos a título de remuneração por servidores públicos, hipótese na qual há autorização legislativa para tanto no art. 47, parágrafo único da Lei nº 8.112/1990 (com previsão semelhante no art. 43, § 1º da Lei Estadual nº 1.818/2007), bem como há uma relação jurídica prévia entre a Fazenda Pública e o devedor. Referida autorização se depreende, ademais, no conceito de dívida ativa não-tributária indicado no art. 39, § 2º da Lei nº 4.320/1964.

Em outras palavras, para sustentar a extinção da execução fiscal pela impossibilidade de inscrição dos respectivos valores em dívida ativa o órgão julgador se referiu a precedente submetido ao rito dos recursos repetitivos cujo julgado direciona à conclusão oposta, pela possibilidade de inscrição e cobrança dos respectivos valores por intermédio do rito em questão.

Outro precedente de casos repetitivos importante para a Fazenda Pública na qual a leitura do inteiro teor do acórdão deixa claro as limitações da cultura do “ementismo” é o acórdão proferido pelo STJ no REsp nº 1.387.248/SC, submetido à sistemática de casos repetitivos do art. 543-C do CPC/1973 (tema repetitivo nº 673). A questão apreciada pelo STJ foi a seguinte: “necessidade de indicação expressa do valor entendido como correto, no caso de impugnação fundada na tese de excesso de execução”. E, com referência a dispositivo do CPC/1973, a Corte Cidadã fixou esta tese: “Na hipótese do art. 475-L, § 2º, do CPC, é indispensável apontar, na petição de impugnação ao cumprimento de sentença, a parcela incontroversa do débito, bem como as incorreções encontradas nos cálculos do credor, sob pena de rejeição liminar da petição, não se admitindo emenda à inicial”.

No curso do processamento do recurso, a União Federal requereu o ingresso como amicus curiae e, acatando as razões expostas pela fazenda nacional, o voto do Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino afastou a aplicação da tese geral aos processos nos quais a Fazenda Pública for a executada – ao menos nos casos em que os cálculos do exequente não estejam baseados em documentação já constante nos autos e submetida ao contraditório quando do início do cumprimento de sentença, no contexto da alegação aduzida pelo ente federal. Em outras palavras, entendeu-se que não era obrigatório que a fazenda pública, quando executada, apresentasse a memória de cálculo nas impugnações, exceção que não está indicada na ementa, sendo identificável apenas por meio da leitura do inteiro teor do acórdão.

A partir desses breves exemplos, percebe-se que a denominada cultura do ementismo prejudica uma aplicação adequada do sistema de precedentes obrigatórios do CPC/2015. Desse modo, se, por um lado, a leitura do inteiro teor dos acórdãos e a identificação da razão de decidir sejam atividades importantes ao lidar com casos judiciais, por outra perspectiva é necessário o constante aperfeiçoamento e controle quanto à redação das ementas dos acórdãos, de modo que reflitam de forma adequada as questões pertinentes debatidas no julgamento e facilitem a indexação do precedente. Isso porque, embora o cuidado com relação ao conteúdo do inteiro teor do acórdão deva sempre estar presente, o aumento expressivo do número de questões afetadas ao sistema de casos respectivos exige técnicas capazes de otimizar a busca e permitir o efetivo conhecimento pelos operadores do direito dos precedentes obrigatórios firmados pelos tribunais, preocupação refletida no art. 927, § 5º do CPC/2015.

Notas_________________________________

1 Vide o art. 927 do CPC/2015.

2 Como, por exemplo, as discussões envolvendo os modelos seriatim e per curiam.

3 Sobre as dificuldades conceituais a respeito da ratio decidendi e de sua identificação nos casos judiciais, vide DERZI, Misabel de Abreu Machado; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A Súmula Vinculante no Direito Penal Tributário: uma nota crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 108.037/ES. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: Diálogos Contemporâneos. Salvador: JusPODIVM, 2013. p. 512-534.

4 Questão denunciada, dentre outros, por SILVA, Sandoval Alves da. O ementismo e a tentativa de usurpação da função dos precedentes. Cadernos de Informação Jurídica, Brasília, v. 3, n. 2., p. 107-120, jul./dez.2016.

5 Apelação cível nº 5000229-67.2004.8.27.2729.

6 A tese firmada foi a seguinte: “À mingua de lei expressa, a inscrição em dívida ativa não é a forma de cobrança adequada para os valores indevidamente recebidos a título de benefício previdenciário previstos no art. 115, II, da Lei nº 8.213/1991 que devem submeter-se a ação de cobrança por enriquecimento ilícito para apuração da responsabilidade civil”.

7 Atualmente, o art. 115, § 3º da Lei nº 8.213/1991 permite, a inscrição em dívida ativa, pela PGF, dos “créditos pelo INSS em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, nos termos da Lei nº 6.830/1980, para a execução judicial.” Diante dessa alteração legislativa o STJ resolveu afetar ao tema repetitivo nº 1064 a possibilidade de aplicação do referido dispositivo legal aos processos em curso, reconhecendo que se trata de questão referente à definição da interpretação e aplicação da tese firmada quanto ao tema repetitivo de nº 598.


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